Leonencio Nossa
Estado de São Paulo
BRASÍLIA
Pela primeira vez, oficiais da reserva do Exército que tiveram poder de comando no combate à Guerrilha do Araguaia falam sobre o movimento armado. Cinco depoimentos integrais concedidos à Comissão da Verdade obtidos pelo Estado confirmam que, após o fracasso das primeiras operações convencionais das Forças Armadas contra a guerrilha na selva amazônica, o Planalto decidiu, em 1973, executar uma política de “eliminação” e “neutralização” dos adversários políticos.
Um dos consultados pela cúpula militar do governo Emílio Garrastazu Médici para viabilizar a política da matança foi o então tenente-coronel Idyno Sardenberg Filho, 82 anos, hoje coronel da reserva, que chefiou a 2.ªSeção do Estado-Maior, responsável pelo pessoal da Brigada Paraquedista, do Rio de Janeiro. “Quando vieram para mim e perguntaram o que eu sugeria, eu disse: ‘Sugiro uma guerra de guerrilhas para não fazer comoção no País e por ser mais adequada'”, relatou.
Braço direito do general Hugo Abreu, combatente na Segunda Guerra enviado ao Araguaia para dar “brilho” à ação do Exército, Sardenberg Filho destacou em seu depoimento à comissão que o comando dos combates na fase “decisiva”–outubro de 1973 ao fim de 1974 – ficou em Marabá, numa unidade improvisada pelo Centro de Informações do Exército (CIE), atual CIEx, ligado ao ministro Orlando Geisel. O órgão chefiado pelo general Milton Tavares era responsável direto pela custódia dos prisioneiros da guerrilha, que, a partir de 1973, acabaram fuzilados. “Nossa missão era combater a guerrilha. Se prendesse, era para entregar ao CIE. Então, entregávamos (os guerrilheiros) lá.”
A importância dos testemunhos está associada à posição hierárquica que os oficiais ocuparam. Até então, os depoimentos sobre a guerrilha dos agentes da reserva mais graduados tinham sido de um ex-major, Lício Augusto Maciel, e de um ex-capitão, Sebastião Curió Rodrigues de Moura – os testemunhos de Lício e Curió têm importância por serem impressões de quem estava no trabalho de campo e combate, na linha de frente, e tinham trânsito na cúpula.
Sardenberg Filho afirma que recebeu do general Milton Tavares o dinheiro para o trabalho de inteligência, que deu base para a fase final e de eliminação da guerrilha. “Quando chegaram à conclusão de que estava onerando e o resultado era pífio, aí me chamaram. General Hugo Abreu disse: ‘Olha. Estão te chamando ao ministério. O general Milton está querendo adotar a sua opção (enviar homens à paisana) ‘. Aí ele (Milton) me deu a missão”, relata Sardenberg Filho. “Ele me deu um bolo de dinheiro. Eu levei um susto muito grande, aí levei para o meu comandante, Hugo Abreu. Um tesoureiro contabilizou, deu o recibo para o general. Era a verba secreta, todo serviço secreto tem verba secreta.”
Um Exército surpreendido pela guerra de guerrilhas. Além de mágoas. É essa a tônica de trechos dos depoimentos prestados pelos oficiais da reserva à Comissão da Verdade. É uma análise sobre uma força que nasceu justamente em ambiente de guerrilhas, nos primeiros tempos da colonização, mas que por décadas atuou de acordo com os preceitos tradicionais de combate.
‘Arquivo da ditadura’. O general da reserva Nilton Cerqueira, de 83 anos, que chefiou o combate no Araguaia no fim de 1973 e começo de 1974, foi outro a prestar depoimento à comissão. Os testemunhos reforçam a pressão para que o Exército libere o acesso ao arquivo do CIEx, popularmente chamado de arquivo oficial da ditadura.
Pesquisadores avaliam que o acervo pode esclarecer em definitivo as circunstâncias das execuções sumárias de 41 guerrilheiros presos ou que se renderam, reveladas pelo Estado há cinco anos, na abertura do arquivo pessoal de Curió. “O cara preparado para a luta tem a convicção que está com a razão, ele está disposto a morrer. E quem enfrenta o combate está com disposição de morrer ou matar. O que é que você acha? Morre ou mata?”, questiona Cerqueira. “Aquilo ali era uma mata, era selva pura, uma pocilga.”
Um dos ex-agentes avalia que a eliminação da guerrilha impediu que forças militares norte-americanas fossem enviadas para o Brasil. “É fundamental que se tenha conhecimento e que pouca gente sabe é que o fato de as Forças Armadas terem vencido a subversão impediu que forças especiais de guerras não convencionais dos Estados Unidos viessem ao País”, disse o general da reserva Álvaro Augusto Pinheiro, 69 anos. Ele se referia à atuação dos boinas verdes, que chegaram a combater tupamaros no Uruguai, montoneros na Argentina, integrantes do Sendero Luminoso, no Peru, e o grupo de Che Guevara na Bolívia.
Álvaro não tinha na época poder de comando, mas pertencia a uma linhagem tradicional do Exército. A notícia de que foi ferido no Araguaia, possivelmente no dia da morte do guerrilheiro Bérgson Gurjão Farias, em 1972, causou comoção na caserna. O jovem oficial era filho do general Enio Pinheiro, figura influente no Exército e nome de peso no processo de expansão da logística e dos transportes no País. Em seu depoimento à comissão, Álvaro observou que, naquele período de guerra fria, “forças irregulares” de esquerda em países periféricos seguiam especialmente as linhas ortodoxa-russa, maoísta-chinesa e foquista-cubana. Ele observa que essas forças foram bem-sucedidas na África e na Ásia por lutar pela independência política. “Aqui na América Latina eles queriam derrubar regimes já estabelecidos e independentes politicamente”, ressalta. A exceção no continente, observa, foi a revolução de Fidel Castro, “que guardou até o último minuto” que se aliaria ao governo de Moscou.
O coronel da reserva Gilberto Zenkner, na época o major que coordenou de Brasília a Operação de Inteligência Sucuri, ação de agentes infiltrados para recolher informações para dar base à fase final, deu o tom do desconforto dos oficiais da reserva em comparecer “lamentavelmente” ao banco de interrogatório da comissão. Zenkner, hoje com 79 anos, ainda associa o movimento armado no Araguaia à ação de tomada de poder de Fidel Castro, nos anos 1950. “Eu tenho a impressão de que estavam fazendo a Serra Maestra, que nem em Cuba, uma ação comunista para o País.”
SAÍ DE LÁ COM A SITUAÇÃO RESOLVIDA’, DIZ GENERAL
Mais destacado combatente no Araguaia ainda vivo, o general da reserva Nilton Cerqueira, 83 anos, que após a ditadura comandou a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, relata que o Exército demorou para identificar o corpo do ex-deputado federal Maurício Grabois, o comandante da guerrilha morto numa operação na manhã chuvosa do Natal de 1973. Cerqueira lembra que só depois de sair da região com sua tropa é que se concluiu que o guerrilheiro estava entre os quatro mortos. “Nós não tínhamos como identificá-lo.”
A operação foi desencadeada por paraquedistas sob as ordens de Cerqueira, que escolheu os homens para o ataque. Uma biografia do PC do B sobre o chefe da guerrilha registra erroneamente que Grabois foi morto pelo então capitão Sebastião Curió – o mesmo livro, na sua primeira versão, destaca que o guerrilheiro paulista era baiano. Numa exposição recente na Câmara dos Deputados sobre a história do partido, o PC do B expôs nove fotos do ex-presidente Lula e dez do ex-dirigente João Amazonas. Não foram expostas imagens de Grabois ou dos demais mortos no Natal de 1973 – Gilberto Olímpio Maria, Guilherme Gomes Lund e Paulo Mendes Rodrigues.
Cerqueira relata que foi enviado ao Araguaia para “resolver a situação”. Ele avalia que o extermínio da comissão militar da guerrilha determinou o fim do movimento armado. “Não (fui enviado) para uma varredura. Ficamos lá muito tempo até praticamente resolver o problema. Saí de lá com a situação praticamente resolvida”, disse. “As pessoas que estavam conduzindo aquele morticínio do lado dos guerrilheiros eram muito frágeis. A comissão deles foi batida no Natal e a partir daí perdeu-se totalmente o aspecto que eles queriam dar de conquista do terreno do sertão brasileiro.”
O militar relatou que o regime teve de montar uma rede de informações específica para garantir o trabalho das tropas especiais na selva amazônica. Ele observa, porém, que parte das missões foi executada sem apoio ou dados da inteligência e da informação. “A parte da inteligência, informação, não existe neste tipo de área. Se o cara da tropa, da guerrilha, está mudando a toda hora, a informação que foi hoje já não é amanhã. E se você for atrás você vai pegar gente inocente. Então você tem que terá informação imediata e responder pelo que vai fazer.”
Nota DefesaNet
A campanha do Araguaia é o maior sucesso das ações brasileiras no antiterrorismo. A pressão do governo Carter, 1976-1980, sobre os direitos humanos tinha um foco que o Brasil abrisse os arquivos de como venceu a guerrilha. A grande questão é que as Forças Armadas Brasileiras não tiveram apoio externo, para enfrentar uma guerrilha treinada em CUBA, Coréia do Norte, Albânia e República Popular da China.
Atualmente a Comissão Nacional da Verdade nada faz mais do que tentar obter documentos necessários ao G2 (Serviço Secreto de Cuba).
Recomendamos a leitura atenta dos textos do General Álvaro Pinheiro:
A série de três artigos produzidos pelo então Coronel Álvaro Pinheiro, como uma posição oficial do Exército Brasileiro, sobre as ações na Amazônia. A série foi publicada originalmente na Publicação Military Review, em 1995.
Posteriormente republicados em DefesaNet:
Guerrilha na Amazônia: uma experiência no passado, o presente e o futuro
Parte 1 O Passado (Link)
Parte 2 A Guerrilha do Araguaia (Link)
Parte 3 A Experiência do rio Traíra (Link)
Outro artigo recomendado: